Ode às Mães
Perguntemos a uma formiga como seria viver fora do formigueiro, a um pinguim emigrar para o deserto do Sahara ou a um pássaro viver permanentemente no chão com as suas pequenas patas. Provavelmente a sua sobrevivência seria ameaçada. Cada espécie nasce com características específicas para assegurar a sua sobrevivência, desenvolvidas ao longo de milhares e milhares de anos. Enquanto alguns animais nascem e imediatamente caminham (como o veado ou o cavalo) como forma de proteção face aos predadores, nós, humanos, durante o início da nossa vida, dependemos de alguém para satisfazer as nossas necessidades e para nos proteger. O nosso desenvolvimento vai ser pautado não só pela carga genética como também pela forma como fomos alimentados, cuidados, estimulados, amados, como nos relacionamos com os diferentes contextos. A nossa versatilidade e adaptabilidade são extraordinárias. No entanto, há condições base que quando omissas acarretam falhas no nosso funcionamento e operacionalidade. O cuidado de um para um é essencial na primeira fase da vida, a criança precisa de alguém que a veja como o “centro”, que respeite profundamente o seu ritmo, de uma família que a aconchegue e ajude a crescer. Para John Bowlby o apego é essencial para o ser humano. Tal como os primatas não humanos se agarram às suas Mães logo após o nascimento, existem provas que os bebés humanos com 3 meses respondem, na sua maioria, primordialmente à Mãe em comparação com outras pessoas. Quando a Mãe se afasta, o bebé segue-a com o olhar ou chora. Chorar, sorrir, gesticular ou produzir sons são formas de reter a Mãe (e mais tarde outras pessoas) junto dele. Assim, de forma a garantir a sua autossobrevivência, os bebés tenderiam a buscar vínculos úteis ao seu desenvolvimento.
Num mundo ideal todos nós veríamos nutrido o direito a este acompanhamento físico e psicológico. Na realidade, nem sempre isso acontece. Há crianças que, em toda a sua pequena vida, só conheceram o caos, o perigo, a negligência, o abuso, a disfuncionalidade familiar e os maus-tratos. Em resumo, que só viveram situações de adversidade. Impõe-se, pois, que cada um de nós saia da sua zona de conforto, que as entidades competentes previnam, regulem e ajam sobre quem agride um ser mais frágil e que pela lei natural da vida deveria ser protegido. Há pais que, pela sua experiência de vida, não conhecem outra forma de lidar com a criança que não agredindo. Outros, deprimidos, incapazes de criar qualquer tipo de vínculo. Os casos são os mais diversos e nem sempre os atos de comissão, ou seja, de exposição a experiências negativas, são os mais graves, quando somos testemunhas sem denúncia cometemos também um ato de omissão quase ao nível de quem priva a experiência essencial ao desenvolvimento.
De todas as experiências adversas a negligência é a mais comum e a mais difícil de detetar. Quando acumulada pode mexer com a arquitetura cerebral nos períodos sensíveis do desenvolvimento. Estudos recentes da Epigenética têm demonstrado que crianças sujeitas a maus-tratos ou stress tóxico (violência doméstica, desastres, etc.) podem sofrer (entre outros) danos no seu desenvolvimento cerebral nomeadamente diminuição do tamanho ou de ligações em algumas partes do cérebro, salientando assim a importância de experiências positivas para o desenvolvimento saudável e a elevada sensibilidade à influência ambiental. Outras sequelas podem advir da adversidade no desenvolvimento, nomeadamente alterações a nível cognitivo, social, físico, normativo,emocional ou no campo das competências da linguagem. Acresce ainda a possibilidade de adquirir comportamentos de risco ou doenças crónicas.
Como seres versáteis e altamente adaptáveis, seria injusto e imprudente afirmar que todas as crianças que passaram por adversidades estão “condenadas”. A resiliência pode transformar em muito a trajetória destes pequenos grandes seres. Traduz-se pela capacidade de restruturar cognitivamente os acontecimentos tornando-os mais aceitáveis, por uma postura otimista e de antecipação prospetiva positiva que permite uma espécie de fantasia de como a vida irá ser quando os momentos difíceis passarem. De acordo com o Projeto Internacional de Resiliência possuir resposta em algumas destas áreas pode mudar uma trajetória de vida: eu tenho – recursos externos de modelagem e suporte social, eu sou – características individuais, atitudes, sentimentos, crenças, eu posso – aptidões sociais aprendidas pela interação (Coimbra, 2008).
No entanto, tudo dependerá das características individuais e do contexto, sendo que em algumas áreas a recuperação pode ser mais rápida enquanto em outras mais lenta e difícil.
No dia das Mãe (e todos os dias) temos a obrigação de mimar quem nos deu ninho e entorno e refletir sobre aqueles que nunca tiveram essa oportunidade. Só isso nos fará mais e melhores humanos.
(Este texto faz parte de um trabalho desenvolvido na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto para a unidade curricular de Contextos de Proteção da Criança.)